A FARSA DE INÊS PEREIRA, GIL VICENTE
I – INTRODUÇÃO:
“A Farsa de Inês Pereira” foi escrita no clímax da carreira dramática de
Gil Vicente e representada, pela primeira vez, perante o rei D. João
III e sua corte, no seu convento de Tomar, em 1523.
A peça vinha como resposta a certos detratores da arte do genial
dramaturgo português, que duvidavam da autenticidade de suas peças e o
acusavam de plagiar obras do espanhol, Juan Del Encina.
O autor furioso com as acusações dos “homens de bom saber” deferidas à
sua arte propõe que sugerem um mote sobre o qual ele deve escrever uma
peça.
O adágio proposto foi o ditado popular: “Mais quero um asno que me leve que cavalo que me derrube”.
Ao apresentar a peça, Gil Vicente diz:
“A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui
poderoso rei D. João, o terceiro do nome em Portugal, no seu Convento de
Tomar, era do Senhor de MDXXIII. O seu argumento é que porquanto
duvidavam certos homens de bom saber se o Autor fazia de si mesmo estas
obras, ou se furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que
fizesse: segundo um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve
que cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa.”
Desenvolvendo nessa farsa, escrita em espanhol e português, o tema que
lhe fora dado, legou-nos Gil Vicente a peça profana mais importante da
época, tanto pelo seu argumento quanto pela sua arquitetura dramática.
“A Farsa de Inês Pereira” é uma comédia de costumes. A unidade de ação
da farsa mantém-se apenas pela presença central de Inês Pereira e pelo
propósito de ilustrar, nas três etapas da vida desta personagem, o
provérbio com que desafiaram o talento dramático de Gil Vicente.
A peça constitui testemunho de uma tradição na educação familiar
medieval de classe burguesa, em que as filhas viviam sob a permanente
vigilância da mãe, limitadas aos afazeres domésticos e a um casamento
arranjado.
Inês Pereira recusa os papéis preestabelecidos, reclama do tédio de sua
rotina doméstica e deseja libertar-se das obrigações impostas à mulher
na sociedade quinhentista, ou seja, romper a clausura que a condena à
submissão.
O oportunismo; o desprezo pela vida camponesa; o prestígio das maneiras
cortesãs; a ignorância do rústico e sua ingenuidade; a falta de
escrúpulos; a ambição; o adultério e a superficialidade são alguns temas
apresentados nessa farsa o que concebe atualidade á obra, porque tratam
de temas universais e reforça a ideia que a sociedade tem mudado muito
pouco em tantos anos.
II – CONTEXTO HISTÓRICO E SOCIAL:
“A farsa de Inês Pereira” é uma comédia de costumes, retrato de
comportamentos poucos recomendáveis. Gil Vicente compõe um painel, cujas
cores ainda se firmam em valores medievais, para tecer profundas
críticas a vários setores da sociedade.
A temática da peça está profundamente ligada à realidade vivida pela
sociedade portuguesa da época de Gil Vicente: a decadência medieval e do
início do Renascimento. Neste tempo de transição, as contradições
culturais foram nítidas e atingiram inclusive os conceitos estéticos. As
expressões literárias expressam a oscilação entre dois mundos: em
primeiro lugar, uma extensão da velha ordem feudal e teocêntrica; em
segundo lugar, como uma busca de renovações propugnadas pelo novo
contexto capitalista e antropocêntrico.
O desenvolvimento do capitalismo reforçou o poder do monarca e provocou a
decadência da nobreza feudal. A riqueza vinda do comércio ultramarino
tendia a ser grande base do prestígio social. A aristocracia dependia
dessa riqueza e procurou diminuir sua importância desprezando-a e
valorizando a origem de sangue, a educação, a fineza, as boas maneiras, a
honra e a coragem, enfim os ideais cavalheirescos. E como a nobreza
mesmo decadente, ainda conservava grande prestígio social, acabou por
impor o estereótipo do cavaleiro como modelo a que deviam aspirar todos
aqueles que queriam pertencer à classe superior. Desse modo, o desejo de
ascensão social da pequena burguesia encontra no casamento uma forma de
consegui-la.
III – CARACTERÍSTICAS:
Segundo Massaud Moisés: “do Latim farsa; farcire, rechear. Sutil, se não
difícil de precisar, é a distinção entre a Farsa e a Comédia. De modo
genérico, pode-se afirmar que a diferença é de grau: a farsa consistiria
no exagero do cômico, graças ao emprego de processos grosseiros, como o
absurdo, as incongruências, os equívocos, os enganos, a caricatura, o
humor primário, as situações ridículas. A Farsa dependeria mais da ação
que do diálogo, mais dos aspectos externos (cenário, roupagem, gestos,
etc) que do conflito dramático (...) Lembrando o burlesco nalguns
aspectos e relacionada até certo ponto com a “Fabliau”, a Farsa
despontou no crepúsculo da Idade Média Francesa: a princípio, consistia
numa breve peça cômica inscrita, a modo de intervalo, no meio de
mistérios. Dentre os numerosos exemplares no gênero (mais de cento e
cinqüenta), produzidos entre 1440 e 1560, época do seu florescimento,
destaca-se “La farce de maítre Pathélin”, composta entre 1460 e 1470.
Após exercer notável influência sobre o teatro seiscentista (Molière,
Shakespeare, “Commedia dell’arte”) a Farsa continuou a ser apreciada até
os nossos dias com experientes pediculares à Farsa.
Em vernáculo e em Espanhol, o vocábulo Farsa não encerra sentido
determinado: tendia a comutar com as palavras “comédia” e “auto” (por
exemplo: “Farsa dos Físicos”, de Gil Vicente, “Farsas Del Nascimiento de
Nuestro Redemtor Jesu-cristo”, de Lucas Fernández).
A rigor, a Antigüidade greco-latina desconheceu a Farsa conforme se
cultivou na Idade Média: não que a gênese da Farsa Medieval se encontra
no teatro satírico pré-cristão”.
Moisés, Massaud, Dicionário de Termos Literários; São Paulo; Cultrix, s/d.
N’A Farsa de Inês Pereira, Gil Vicente apresenta um tom extremamente
crítico e caricato dos costumes, fazendo da máxima “ridendo castigar
mores (“rindo castigam os costumes”), onde a ironia soma-se à
tipificação de situações e personagens.
Gil Vicente explorou os recursos textuais recorrendo ás características
do teatro medieval: estrofação irregular; versos curtos, principalmente
os redondilhos, resultando em musicalidade.
Suas farsas mesclam drama e poesia conjuntamente. Mas, enquanto que seu
teatro é rico em recursos textuais, ele é pobre em recursos
cenográficos. Essa diferença encontra justificada no propósito didático
do autor: como recurso de fixação de valores do painel da Idade Média
portuguesa.
O dramaturgo em “A farsa de Inês Pereira” utiliza-se da vivacidade, do
realismo e da diversidade linguística para compor diálogos bem humorados
e, ao mesmo tempo, didático-moralizantes, concorrendo para formar um
texto repleto de belezas e riquezas literárias que, deixam entrever um
dos enredos mais organizados de Gil Vicente, já, bem próximo da
estrutura novelesca.
Os recursos cenográficos, por sua vez, com a ausência de orientações de
cena; despreocupação com um roteiro rígido; paralelismo estrutural e
semântico estabelecidos entre as cenas; e, ainda, o desrespeito as leis
de unidade e de sequência do teatro clássico, dão margem á uma monotonia
cenográfica.
A cena da mocinha oprimida pela mãe, que é retomada na cena da mocinha
oprimida pelo primeiro marido, que, por sua vez, é confirmada na cena em
que o segundo marido é oprimido por Inês. O mesmo paralelismo,
provavelmente inspirado na estrutura paralelística das Cantigas de Amigo
medievais, acontece entre as cenas em que Lianor apresenta o primeiro
pretendente e a cena em que os judeus apresentam o segundo pretendente,
ratifica a despreocupação com os aspectos de palco, como a teatralidade
popular vicentina.
Esse paralelismo confere á “A farsa de Inês Pereira” uma estrutura
cenográfica bastante simplificada, a despeito das riquezas poéticas e
exige das doses de humor e moralismo um papel mais significativo pela
sustentação da peça.
As personagens femininas do texto são marcantes – não por acaso, uma
delas dá título à peça - e apresentam diferenças entre si, sendo
expressivo o fato de cada uma refletir um aspecto da sociedade de então.
Por meio dos diferentes discursos enunciados por elas, o texto desvela a
ideologia de cada uma, num entrelaçamento de falas, provérbios e
negações.
IV – TEMPO E ESPAÇO:
O tempo é circunscrito pelo tempo cronológico e linear que vai do desejo
de casamento de Inês até o desfecho do segundo casamento.
O espaço abrange a casa de origem de Inês e as casas de destino da moça
após os dois casamentos. A casa da mãe de Inês e a casa do primeiro
casamento cumprem um mesmo papel de ambiente castrador e submissão da
figura feminina medieval.
V – PERSONAGENS:
As personagens vicentinas representam muito mais pelas relações sociais,
pelo caráter institucional, pelo elemento coletivo e cultural que pelo
elemento psicológico individualizante. Possuem uma dimensão simbólica
inerente: ora como tipos sociais ou comportamentais ora como alegorias
de valores morais.
INÊS PEREIRA:
É a personagem melhor caracterizada na peça, a mais complexa, a única que sofre alguma transformação de personalidade.
A protagonista, assim, tipifica o comportamento das mocinhas casadoiras
do final da Idade Média que trocam os valores tradicionais pela ilusão
das aparências sedutoras. Porém, a independência e o comportamento de
Inês conferem a ela um caráter único, quer seja, uma mulher muito
avançada para o seu tempo. Ela, tudo indica, é pintada como uma bela
mulher, e como tal idealizada.
Ela representa uma condenação à mudança de valores operada na sociedade portuguesa no século XVI.
Moça bonita, solteira, burguesa, sonhadora e rebelde, Inês sonha
casar-se, vendo no casamento uma libertação dos afazeres domésticos e
automaticamente, sua ascensão social, imaginando um casamento com um
homem que seja discreto, galante, bailarino e músico. Dessa forma, Inês
despreza o casamento com um homem simples, trabalhador, honesto,
respeitador e que a ame, deixando-se levar pelas aparências, preferindo
um marido de comportamento refinado, mesmo indo contra as recomendações
de sua mãe.
Assume, a princípio, uma posição de submissão em relação ao seu papel
social, no entanto, revela-se rebelde, quando percebe que seus ideais de
liberdade não cumpridos com o primeiro casamento podiam se cumprir num
segundo casamento.
Ela é o centro do enredo que revela as formalidades vazias do amor e do casamento arranjado por interesse.
MÃE:
É a típica dona de casa pequeno-burguesa e provinciana. Preocupada com a
educação e o futuro da filha em idade de casar. Dá conselhos prudentes,
inspirada por uma sabedoria popular imemorial.
Surge assim, como reprodutora dos costumes tradicionais submetendo Inês
ao aprendizado de um papel social feminino submisso e escravo.
Chega a ser comovente em sua singela ternura pela filha, a quem presenteia com uma casa por ocasião das núpcias.
PERO MARQUES:
Camponês simples, com aparência tola, honrado, não conhece os costumes
das pessoas da cidade. É uma personagem ambígua, ao mesmo tempo em que, é
ridicularizado pela ingenuidade, é valorizado pela integridade de
caráter. Num segundo momento, porém, sua aparência é deixada de lado, em
nome de sua dedicação, de seu afeto, de sua submissão e em nome dos
interesses amesquinhados de Inês, que acaba aceitando-o como marido,
depois de viúva. Fiel e dedicado, revela se um gentil e carinhoso
marido.
BRÁS DA MATA:
Brás da Mata é um escudeiro, isto é, homem das armas que auxiliava os
cavaleiros fidalgos. Na mudança do feudalismo para o capitalismo, a
maioria permaneceu numa condição subalterna, procurando imitar a
aristocracia.
Interesseiro e dissimulado é a representação da esperteza das classes
superiores. É um nobre decadente que não perde o orgulho e pretende
aproveitar-se economicamente de Inês através do dote.
Surge como revelação do cotidiano mais amesquinhado de herói, que é
apresentado como um carrasco da esposa, e que morreu, ironicamente, nas
mãos dos árabes, bem diferentemente do que se idealiza na História
Sagrada da Cavalaria. Surge assim, como uma verdadeira caricatura do que
seria o herói medieval.
LIANOR VAZ:
Lianor Vaz é uma típica alcoviteira. Representa a invasão da privacidade
e a costumeira, mas, indesejada, exposição da vida privada à esfera
pública, mesmo sem consentimento. Lianor serve bem para indicar
exatamente essa passagem ilustrativa, desejada por Gil Vicente, para
construir sua comédia da vida privada publicada a partir de aspectos
individuais do comportamento, atingir, de modo humorado, crítico,
algumas vezes, moralista, a esfera social.
Quando atacada no caminho por um padre devasso mostra sua frouxidão moral.
LATÃO E VIDAL:
Dois judeus casamenteiros, caricatura de hábeis negociantes que circulavam pelo universo do comércio medieval visando lucros.
São muito parecidos, possuem as mesmas características como fossem o
mesmo repartido em dois. Faladores, insinuantes e maliciosos estabelecem
o contato entre Inês e Brás da Mata.
MOÇO DO ESCUDEIRO:
Pajem de Brás da Mata. Pobre coitado, explorado por um amo infame.
Humilde, deixa-se explorar e acredita ingenuamente nas promessas do
Escudeiro.
ERMITÃO:
Constitui uma caricatura da figura clerical: chegou ao clérigo, não por
opção ou vocação, mas por decepção com a vida pessoal, sobretudo no
quesito amoroso.
CLÉRIGO:
Padre que atacou sexualmente Lianor Vaz. Simboliza o rebaixamento e a devassidão do comportamento clerical.
VI – ENREDO:
“A farsa de Inês Pereira” divide-se em três jornadas:
- INÊS FANTESIOSA;
- INÊS MAL-MARIDADA;
- INÊS QUITE E DESFORRADA.
E estrutura-se a partir de sete quadros que se sucedem, organizados da seguinte forma:
1. Apresentação da vida de Inês, ainda solteira, com a mãe;
2. Conselhos de Lianor Vaz sobre o casamento;
3. Apresentação de Pero Marques;
4. Entrada do escudeiro;
5. As desilusões do casamento;
6. A viuvez de Inês Pereira;
7. A vida de casada com Pero Marques.
A apresentação de Inês, já no início do texto, é marcada por uma atitude
de revolta diante das entediantes tarefas impostas à mulher da época.
Inês Pereira, mocinha em idade de casamento, vivia submissa à mãe e ao
aprendizado dos serviços cotidianos; enquanto a mãe vivia aos passeios,
Inês tomava conta da casa e da reputação para que, não sendo tomava como
preguiçosa ou vulgar, cumprisse o propósito de atrair um marido
prudente, sabido e discreto.
A mãe, muito rigorosa, exigia e aconselhava sempre mais e mais empenho
da moça nesse propósito, já que ela era uma moça humilde, sem dote, cuja
fidelidade e sobrevivência dependiam do casamento.
A fala da protagonista, no entanto, queixa-se dos afazeres domésticos e
do isolamento social a que a mãe a destina e são acentuadas pelos termos
tormento, cegueira e canseira, refletindo o tédio presente em sua vida.
INÊS:
Renego deste lavrar
e do primeiro que o usou!
Ao diabo que o eu dou,
que tão mau é d'aturar!
Ó Jesu! Que enfadamento,
e que raiva, e que tormento,
que cegueira, e que canseira!
Eu hei de buscar maneira
d'algum outro aviamento.
Sua fala é repleta de expressões
que sugerem uma crítica à falta de perspectivas para a mulher da época.
Seu desencanto diz respeito, principalmente, à estagnação que vitimava
as moças de então.
Isabel Allegro de Magalhães, em seu estudo “O
Tempo das Mulheres” destaca o tempo estático das mulheres na Idade Média
em contraste com o tempo masculino, o tempo de partir, marcado por
aventuras e por um espaço aberto e externo. Já às mulheres resta á
clausura, o emparedamento. Note-se que é justamente nesse ponto que
reside á queixa de Inês, que lamenta o marasmo de sua vida:
INÊS:
Coitada, assi hei d’estar
encerrada nesta casa
como panela sem asa,
que sempre está num lugar?
E assi hão de ser logrados
dous dias amargurados,
que eu possa durar viva?
E assim hei d’estar cativa
Em poder de desfiados?
(...)
Já tenho a vida cansada
De jazer sempre dum cabo.
(...)
Esta é mais que morta.
São eu coruja ou corujo,
Ou são algum caramujo
Que não sai senão à porta?
Seu posicionamento ideológico de recusa dos valores vigentes
verifica-se, linguisticamente, por um discurso repleto de exclamações,
marcando o seu temperamento intempestivo, e por indagações, como que a
interrogar a própria condição.
O lamento de Inês esbarra na oposição da mãe, humilde e simples, cuja
fala reflete o conformismo diante da sociedade de então. Além de
censurar os desejos da filha, defende as regras e valores da época, ao
aconselhar Inês a ter bom senso:
MÃE:
Toda tu estás aquela...
Choram-te os filhos por pão?
(...)
Como queres tu casar
com fama de preguiçosa?
(...)
Não te apresses tu, Inês:
"Maior é o ano que o mês".
Quando te não precatares,
virão maridos a pares,
e filhos de três em três.
O discurso da Mãe, impregnado de lugares-comuns e provérbios populares,
marca a reprodução de valores da época. Sua fala, que atua como
contraponto à de Inês, é marcada pelo conservadorismo. Valendo-se de
frases feitas, demonstra, no plano discursivo, sua identificação com o
pensamento de então. Enquanto Inês simboliza a renovação, as demais
personagens femininas representam a perpetuação de um pensamento ainda
marcado por um ranço medieval. A Mãe, conformista, pensa que o destino
natural da filha é o casamento e a maternidade.
Aparece, então, Lianor Vaz, uma alcoviteira da região que lhe traz uma proposta de casamento.
A alcoviteira relata que no caminho, um clérigo pretextando saber se era
macho ou fêmea importunou-a com malícias. A Mãe confessa que o mesmo
fato se deu com ela outra vez, quando fora atacada por um homem no
campo.
Enquanto, Lianor valendo-se de subterfúgios para se justificar por não
ter resistido ao ataque: ela estava cansada e teve um acesso de tosse, a
Mãe comenta que na ocasião, teve um ataque de riso.
Mãe e Inês demonstram desconfianças dos argumentos de Lianor, uma vez
que a alcoviteira não apresentava marcas de arranhões e machucados e
como suas forças foram poucas, significa que não se defendeu do ataque,
entregando-se a ele.
Após chorar sua sina, diz trazer proposta de casamento para Inês, por
parte de Pero Marques, filho de um lavrador inculto, rústico, mas rico e
com boas intenções.
LIANOR:
Eu vos trago aviamento.
INÊS:
Porém, não hei-de casar
Senão com homem avisado
Ainda que pobre e pelado,
Seja discreto em falar,
Que assi o tenho assentado.
LIANOR:
Eu vos trago um bom marido,
Rico, honrado, conhecido;
Diz que em camisa vos quer
INÊS
Primeiro eu hei-de saber
Se é parvo, se sabido.
LIANOR:
Nesta carta que aqui vem
Pera vós, filha, d'amores,
Veredes vós, minhas flores,
A discrição que ele tem.
INÊS:
Mostrai-ma cá, quero ver
LIANOR:
Tomai. E sabedes vós ler?
INÊS (lê a carta)
“Senhora amiga Inês Pereira,
Pêro Marquez, vosso amigo,
Que ora estou na nossa aldea,
Mesmo na vossa mercea
M'encomendo. E mais digo,
Digo que benza-vos Deos,
Que vos fez de tão bom jeito.
Bom prazer e bom proveito
Veja vossa mãe de vós.
E de mi também assi,
Ainda que eu vos vi,
Est'outro dia folgar,
E não quisestes bailar,
Nem cantar presente mi..."
Lianor e a Mãe comungam dos códigos vigentes, fato que pode ser percebido nos conselhos dados por Lianor a Inês:
LIANOR:
Não queirais ser tão senhora!
Casa, filha, que te preste,
não percas a ocasião.
Queres casar a prazer
No tempo d'agora, Inês?
Antes casa em que te pês,
que não é tempo d'escolher.
Sempre eu ouvi dizer:
"ou seja sapo ou sapinho,
ou marido ou maridinho,
tenha o que houver mister."
Este é o certo caminho.
Em uma sociedade em que a única forma de sobrevivência feminina estava no matrimônio, Lianor aconselha a moça a se casar, mesmo que isso a incomode, numa reprodução dos valores da época. A Mãe utiliza-se de ditados populares, um discurso que se limita a repetir os costumes e pensamentos da época, sem questioná-los.
MÃE:
"Mata o cavalo de sela
e bô é o asno que me leva".
LIANOR:
Filha, “no Chão do Couce
quem não puder andar, choute.”
E “mais quero eu quem me adore
que quem faça com que chore”.
Significativa é uma das imagens evocadas pela Mãe: mais vale um asno que
a leve do que um cavalo que a derrube, numa retomada do mote e num
prenúncio do desfecho do auto. Inês é firme em suas convicções: quer um
homem culto e esperto, ainda que não seja rico. Movida por essa ilusão,
após ler a carta, despreza o remetente, o rude Pero Marques, filho de
lavradores, que lhe parece parvo por sua rusticidade.
Sua linguagem revela a timidez e a ignorância, além de marcar a sua
ingenuidade, aspecto fundamental para o desfecho da peça. No processo de
caracterização por meio da linguagem, os traços mais flagrantes de Pero
Marques são evidenciados, gerando o repúdio de Inês. Seu discurso
denuncia sua falta de cultura, ora exagerando na formalidade, ora
indicando a sua forma provinciana de se expressar:
Inês repudia o pretendente, chegando mesmo a depreciá-lo, criticando-lhe
a simplicidade. Sua condição financeira não a atrai, e ela recusa o
pedido de casamento.
A alcoviteira insiste em um encontro e Inês aceita apenas para que possa
se rir do enamorado tolo, caracterizando-o como “fora de mão”.
INÊS:
Venha e veja-me a mi.
Quero ver quando me vir
Se perderá o presumir
Logo em chegando aqui,
Pera me fartar de rir.
Como ficou combinado, chega Pero Marques, o camponês pretendente à mão de Inês. Apesar de proprietário de terras e gado, demonstra ser um idiota. Pero traz umas peras de presente, não sabe sentar-se na cadeira, constrange-se ao ver-se sozinho em presença de Inês, quando a mãe desta se ausenta. Apesar da insistência de Lianor e da Mãe a aconselhando-a a aceitar o pedido de casamento, Inês dispensa-o, sobretudo por causa da aparência caipira do pretendente e reafirma que só aceitará como marido um sujeito galante, que soubesse tocar, cantar, dançar, fazer poesia, e, assim, com certeza, se sentiria feliz.
PERO:
Homem que vai aonde eu vou
Não se deve de correr
Ria embora quem quiser
Que eu em meu siso estou.
Não sei onde mora aqui...
Olhai que m'esquece a mi!
Eu creo que nesta rua...
E esta parreira é sua.
Já conheço que é aqui.
Digo que esteis muito embora.
Folguei ora de vir cá...
Eu vos escrevi de lá
Üa cartinha, senhora...
E assi que de maneira...
MÃE:
Tomai aquela cadeira.
PERO:
E que val aqui uma destas?
INÊS:
Ó Jesu! que João das bestas!
Olhai aquela canseira!
Nos versos seguintes, o jeito caipira e desastrado de Pero Marques contribui para arrefecer o juízo que Inês fazia dele. Pero Marques senta-se com as costas para as mulheres, e diz:
PERO:
Eu cuido que não estou bem...
MÃE:
Como vos chamais, amigo?
PERO:
Eu Pero Marques me digo,
Como meu pai, que Deos tem.
Faleceu, perdoe-lhe Deos,
Que fora bem escusado,
E ficamos dous heréus.
Porém meu é o mor gado.
MÃE:
De morgado é vosso estado?
Isso viria dos céus.
Nestes versos ocorre um trocadilho com a palavra “morgado”: a mãe
entendeu que ele herdou (“heréus” – herdeiro) um morgado, portanto era
riquíssimo e vivia de rendas e, no entanto, tratava-se de “mor gado”,
proprietário de muito gado.
PERO:
Mais gado tenho eu já quanto,
E o mor de todo o gado,
Digo maior algum tanto.
E desejo ser casado,
Prouguesse ao Espírito Santo,
Com Inês, que eu me espanto
Quem me fez seu namorado.
Parece moça de bem,
E eu de bem, er também.
Ora vós er ide vendo
Se lhe vem milhor ninguém,
E segundo o que eu entendo.
Cuido que lhe trago aqui
Pêras da minha pereira...
Hão-de estar na derradeira.
Tende ora, Inês, per i.
Nestas duas estrofes mostram que Pero Marques julga ser o melhor
candidato para Inês e acaba por fazer outro trocadilho com “pêra e
Pereira” (sobrenome de Inês) demonstrando o embaraço de Pero Marques.
INÊS:
E isso hei-de ter na mão?
PERO:
Deitae as peas no chão.
INÊS:
As perlas pera enfiar..
Três chocalhos e um novelo...
E as peias no capelo...
E as pêras? Onde estão?
PERO:
Nunca tal me aconteceu!
Algum rapaz m'as comeu...
Que as meti no capelo,
E ficou aqui o novelo,
E o pente não se perdeu.
Pois trazia-as de boa mente...
INÊS:
Fresco vinha aí o presente
Com folhinhas borrifadas!
PERO:
Não, que elas vinham chentadas
Cá em fundo no mais quente.
Vossa mãe foi-se?
Ora bem... Sós nos leixou ela assi?...
Cant'eu quero-me ir daqui,
Não diga algum demo alguém...
Pero Marques tira uma série de coisas de seu capuz: peas (corda para
segurar animais), chocalho e novelo; mas as peras foram roubadas.
O pretendente é dispensado pela moça, mas promete que não vai se casar
senão com ela, portanto ficará esperando até que Inês decida aceitar sua
proposta.
Tal recusa, nesse momento, é importante, pois marcará a diferença de
perspectivas da protagonista no decorrer da história. Curiosamente, a
ingenuidade de Pero Marques, que será vista ao final como algo
extremamente conveniente, é agora motivo de escárnio por parte de Inês,
que o ridiculariza por não se ter aproveitado de estarem a sós.
Logo chegam dois judeus casamenteiros, Latão e Vidal, a quem a moça
encomenda um noivo ideal. Segue os dois judeus e depois de muito
reclamarem do cansaço que lhes deu a encomenda, afirmam que encontraram
um homem perfeito é um escudeiro, Brás da Mata.
A Mãe recrimina a filha por se envolver com gente tão pouco confiável, mas Inês pede que ela não se intrometa.
VIDAL:
Esperai, aguardai ora!
Soubemos dum escudeiro
De feição d'atafoneiro
Que virá logo essora,
Que fala... e com' ora fala!
Estrugirá esta sala.
E tange... e com' ora tange!
E alcança quanto abrange,
E se preza bem da gala.
Vem o Escudeiro, com seu Moço, que lhe traz uma viola, e diz, falando só:
ESCUDEIRO:
Se esta senhora é tal
Como os Judeus ma gabaram,
Certo os anjos a pintaram,
E não pode ser i al.
Diz que os olhos com que via
Foram de Santa Luzia,
Cabelos, da Madanela...
Se ela fosse donzela
Tudo essoutro passaria...
Moça de vila será ela,
Com sinalzinho postiço,
E sarnosa no toutiço,
Como burra de Castela.
Eu, assi como chegar
Cumpre-se bem atentar
Se é garrida, se honesta,
Porque o milhor da festa
É achar siso e calar.
Enquanto isso, a Mãe aconselha à filha que represente um papel para agradar ao rapaz, sugerindo a hipocrisia vigente. Expressivos são os conselhos dados à Inês, demonstrando que os atributos femininos desejáveis então eram aqueles ligados à passividade e à submissão: falar pouco, não rir, não encarar e olhar para baixo, numa atitude subserviente condizente com a misoginia da época.
MÃE:
Se este escudeiro há-de vir
e é homem de discrição
hás-te de pôr em feição,
e falar pouco e não rir.
E mais, Inês, não muito olhar,
e muito chão o menear,
porque te julguem por muda,
porque a moça sesuda
é ua perla pera amar.
Em seguida, o escudeiro acompanhado por Fernando, um moço, seu criado, entram em cena.
Ele recomenda ao rapaz se comportar: não usar barrete quando o amo não
usar; quando cuspir no chão, limpar o cuspe com o pé e desculpar-se; não
rir, caso ele conte muitas mentiras à moça.
Fernando reclama que não tem sapatos nem calças para se apresentar
dignamente e o escudeiro promete-lhe que em breve terá dinheiro para
pagá-lo.
Brás da Mata, um nobre falido, finge e atua diante de Inês um papel de homem cortesão e discreto.
O escudeiro pede a Fernando a viola e encanta com seus dotes físicos,
artísticos e seu discurso ensaiado. Numa única visita, repleta de
aparências e cenografia, Inês convence-se dos dotes do pretendente e
aceita sua proposta de casamento, mesmo a contragosto de sua Mãe.
Os judeus exaltam a decisão e cobram seu pagamento pelo êxito de seus
préstimos. A Mãe promete entregar o dinheiro no dia seguinte.
ESCUDEIRO:
Oh que boas vozes tem
Esta viola aqui!
Leixa-me casar a mi,
Depois eu te farei bem.
MÃE:
Agora vos digo eu
Que Inês está no Paraíso!
INÊS:
Que tendes de ver co isso?
Todo o mal há-de ser meu.
MÃE:
Quanta doudice!
INÊS:
Oh! como é seca a velhice!
Leixai-me ouvir e folgar,
Que não me hei-de contentar
De casar com parvoíce.
Pode ser maior riqueza
Que um homem avisado?
MÃE:
Muitas vezes, mal pecado,
é milhor boa simpreza.
LATÃO:
Ora oivi, e oivireis.
Escudeiro, cantareis
lguma boa cantadela.
Namorai esta donzela
O falsário, assim, alcança seus objetivos e se casa com Inês. Há uma festa com a presença de algumas moças e mancebos vizinhos e a Mãe presenteia os noivos com sua casa, partindo logo em seguida.
ESCUDEIRO:
(...)
Nome de Deus, assi seja!
Eu, Brás da Mata, Escudeiro,
Recebo a vós, Inês Pereira
Por mulher e por parceira
Como manda a Santa Igreja.
INÊS:
Eu, aqui diante Deus,
Inês Pereira, recebo a vós,
Brás da Mata, sem demanda,
Como a Santa Igreja manda.
(...)
MÃE:
Amenhã vo-los darão.
Pois assi é, bem será
Que não passe isto assi.
Eu quero chegar ali
Chamar meus amigos cá,
E cantarão de terreiro.
ESCUDEIRO:
Oh! quem me fora solteiro!
INÊS:
Já vós vos arrependeis?
ESCUDEIRO:
Ó esposa, não faleis,
Que casar é cativeiro.
Após as bodas, com cantorias, banquete e alegria, os recém-casados ficam sozinhos e Inês põe-se a lavrar e a cantar de felicidade. Brás da Mata, que até então, portava-se como um cavalheiro transforma-se num tirano e ordena que a esposa se cale; proíbe que ela cante; dance; não responda ao marido; não converse com ninguém; só saia de sua casa para ir à igreja e nem sequer apareça na janela.
Enfim, Inês deverá ficar reclusa em casa, como se fosse uma freira. E, entre gritos acusa-a de volúvel e desprezível.
ESCUDEIRO:
Vós cantais, Inês Pereira?
Em vodas m'andáveis vós?
Juro ao corpo de Deus
Que esta seja a derradeira!
Se vos eu vejo cantar
Eu vos farei assoviar..
INÊS:
Bofé, senhor meu marido,
Se vós disso sois servido,
Bem o posso eu escusar.
ESCUDEIRO:
Mas é bem que o escuseis,
E outras cousas que não digo!
INÊS:
Porque bradais vós comigo?
ESCUDEIRO:
Será bem que vos caleis.
E mais, sereis avisada
Que não me respondais nada,
Que não me respondais nada,
Em que ponha fogo a tudo,
Porque o homem sesudo
Traz a mulher sopeada.
Vós não haveis de falar
Com homem nem mulher que seja;
Nem somente ir à igreja
Não vos quero eu leixar
Já vos preguei as janelas,
Por que não vos ponhais nelas.
Estareis aqui encerrada
Nesta casa, tão fechada
Como freira d'Oudivelas.
INÊS:
Que pecado foi o meu?
Porque me dais tal prisão?
ESCUDEIRO:
Vós buscastes discrição,
Que culpa vos tenho eu?
Pode ser maior aviso,
Maior discrição e siso
Que guardar o meu tisouro?
Não sois vós, mulher meu ouro?
Que mal faço em guardar isso?
Vós não haveis de mandar
Em casa somente um pêlo.
Se eu disser: - isto é novelo
Havei-lo de confirmar
E mais quando eu vier
De fora, haveis de tremer;
E cousa que vós digais
Não vos há-de valer mais
Que aquilo que eu quiser.
Depois, o escudeiro comunica que vai para terras d’além mar, para guerrear e tentar fazer-se cavaleiro. Obriga o pajem vigiar a Inês, mas o moço reclama que não tem recursos para se sustentar. Brás da Mata diz que, até a sua volta, ele deve se virar.
Após a partida do escudeiro, Fernando vai para a rua, divertir-se com as mulheres, mas antes tranca a esposa de seu amo em casa.
Inês, abandonada, fechada, lavra e põe-se a cantar, declamando de sua sina. Ela acreditava que os fidalgos fossem gentis com suas damas. Jura que, se conseguir se livrar desse infeliz destino, não se casará senão com marido que possa dominar.
INÊS:
Quem bem tem e mal escolhe
Por mal que lhe venha não s'anoje.
Renego da discrição
Comendo ò demo o aviso,
Que sempre cuidei que nisso
Estava a boa condição.
Cuidei que fossem cavaleiros
Fidalgos e escudeiros,
Não cheios de desvarios,
E em suas casas macios,
E na guerra lastimeiros.
Vede que cavalarias,
Vede que já mouros mata
Quem sua mulher maltrata
Sem lhe dar de paz um dia!
Sempre eu ouvi dizer
Que o homem que isto fizer
Nunca mata drago em vale
Nem mouro que chamem Ale:
E assi deve de ser.
Juro em todo meu sentido
Que se solteira me vejo,
Assi como eu desejo,
Que eu saiba escolher marido,
À boa fé, sem mau engano,
Pacífico todo o ano,
E que ande a meu mandar
Havia m'eu de vingar
Deste mal e deste dano!
A infelicidade de Inês durou três
meses. Ela recebe uma carta de seu irmão que estava na mesma guerra que
Brás de Mata, informando-a que o seu marido foi morto por um pastor
mulçumano, quando tentava fugir da batalha em Arzila. Logo, Inês
dispensa o pajem e planeja arranjar um marido manso, que lhe permita
gozar a vida.
MOÇO:
Ó meu amo e meu senhor!
INÊS:
Dai-me vós cá essa chave
E i buscar vossa vida.
MOÇO:
Oh que triste despedida!
INÊS:
Mas que nova tão suave!
Desatado é o nó.
Se eu por ele ponho dó,
O Diabo me arrebente!
Pera mim era valente,
E matou-o um mouro só!
Guardar de cavaleirão,
Barbudo, repetenado,
Que em figura de avisado
É malino e sotrancão.
Agora quero tomar
Pera boa vida gozar,
Um muito manso marido.
Não no quero já sabido,
Pois tão caro há de custar.
Fingindo tristeza pela morte do escudeiro, Inês recebe Lianor com o
intuito de que ela se compadecesse de sua dor e pudesse tratar de um
novo pretendente.
Arrependida de sua precipitação, Inês afirma que, se lhe fosse dada
outra chance, não incorreria no mesmo equívoco. Significativamente, ela
principia seu novo discurso com o mesmo termo com que antes amaldiçoava o
lavrar: renego. Entretanto, o que ela renega aqui é a discrição,
qualidade que a fez desposar o homem que a fez infeliz. A protagonista
modifica-se ao longo do auto, passando por um processo de sofrimento e
de aprendizagem.
LIANOR:
Como estais, Inês Pereira?
INÊS:
Muito triste, Lianor Vaz.
LIANOR:
Que fareis ao que Deus faz?
INÊS:
Casei por minha canseira.
LIANOR:
Se ficaste prenhe basta.
INÊS:
Bem quisera eu dele casta, Mas não quis minha ventura.
LIANOR:
Filha, não tomeis tristura,
Que a morte a todos gasta.
A alcoviteira traz o remédio para a sua tristeza: casar-se novamente,
mas agora com o seu primeiro pretendente que ela tanto desprezara,
afinal, a experiência lhe ensinara que Pero Marques, em sua parvoíce era
sua melhor opção matrimonial. Mas, agora que Pero Marques herdou
fazendas de mil cruzados e ainda é apaixonado por Inês.
Ela se faz de preocupada com a moral, casar-se tão logo de ficar viúva,
mas Lianor diz que a opinião alheia não importa, e vai buscar o
camponês.
INÊS:
Andar! Pêro Marques seja.
Quero tomar por esposo
Quem se tenha por ditoso
De cada vez que me veja.
Por usar de siso mero,
Asno que me leve quero,
E não cavalo folão.
Antes lebre que leão,
Antes lavrador que Nero.
Pero Marques chega e o casamento se realiza rapidamente, sem preocupação
com o ritual ou a tradição, inclusive sem o trigo da sorte para jogar
sobre os noivos. Em seguida, Lianor se retira.
Inês pede ao marido para sair e passear sozinha e Pero Marques, prontamente, consente.
INÊS:
Marido, sairei eu agora,
Que há muito que não saí?
PERO:
Si, mulher saí-vos i,
Qu'eu me irei pera fora.
INÊS:
Marido, não digo isso.
PERO:
Pois que dizeis vós, mulher?
INÊS:
Ir folgar onde eu quiser
PERO:
I onde quiserdes ir,
Vinde quando quiserdes vir
Estai onde quiserdes estar.
Com que podeis vós folgar
Qu'eu não deva consentir?
Quando Inês usufruía das vantagens do novo casamento, passa por ali um
ermitão pedindo esmolas. O ermitão conta-lhe sobre seus dissabores: vive
sozinho, rezando e sofrendo por um amor não correspondido.
Inês vai até ele e lhe dá a esmola. Então, o ermitão revela a sua
verdadeira identidade: tratava-se de um ex-pretendente de Inês, que ela
dispensou.
A moça reconhece o Ermitão numa imagem evocada do seu passado de menina,
na casa da tia: era o moço que lhe mandava presentes, pretendendo,
naquele tempo, conquistá-la. Ela, porém, o desprezara por conta da idade
ainda muito tenra.
ERMITÃO:
Sea por amor de mi
Vuesa buena caridad.
Deo gratias, mi señora!
La limosna mata el pecado,
Pero vos teneis cuidado
De matar-me cada hora.
Deveis saber
Para merced me hacer
Que por vos soy ermitaño.
Y aun más os desengaño:
Que esperanças de os ver
Me hizieron vestir tal paño.
INÊS:
Jesu, Jesu! manas minhas!
Sois vós aquele que um dia
Em casa de minha tia
Me mandastes camarinhas,
E quando aprendia a lavrar
Mandáveis-me tanta cousinha?
Eu era ainda Inesinha,
Não vos queria falar.
Logo combinam um encontro na ermida do ermitão, para recuperarem o tempo perdido.
INÊS:
Padre, mui bem vos entendo
Ó demo vos encomendo,
Que bem sabeis vós pedir!
Eu determino lá d'ir
À ermida, Deus querendo.
ERMITÃO:
E quando?
INÊS:
I-vos, meu santo,
Que eu irei um dia destes
Muito cedo, muito prestes.
Inês convence seu marido a acompanhá-la até a ermida distante,
onde deverá encontrar-se com um “anjinho de Deus”, na verdade, o
ermitão-amante.
No caminho, há um rio. Inês pede ao marido que a carregue nos ombros,
para que a água fria não lhe faça mal, cortando seu ciclo menstrual.
Pero Marques feito um ASNO obedece-a prontamente, dando assim, mostras
de sua afeiçoa, de sua dedicação e de seu amor pela mulher, e, ao mesmo
tempo, dando mostras de sua submissão, de sua condição vassala diante de
Inês.
INÊS:
Passemos primeiro o rio.
Descalçai-vos.
PERO:
E pois como?
INÊS:
E levar me-eis no ombro,
Não me corte a madre o frio.
Em seguida, Inês vê umas lousas que servem para colocar talhas. Ela ordena Pero Marques carregar duas delas.
Inês viaja feliz nas costas do marido e sugere que eles cantem.
Pero Marques afirma que não sabe cantar, então, ela pede que ele repita o
refrão da cantiga: “Pois assi se fazem as cousas”, verso que sintetiza a
sua aquiescência.
Na letra da música, ele é chamado por “marido cuco” (“marido traído”),
“gamo” e “cervo”, referindo-se a três animais de chifres que
tradicionalmente servem como símbolo de marido enganado, antecipando a
sua traição. Mas, a ingenuidade do inocente Pero impede-o de perceber o
comportamento de Inês.
INÊS:
Cantemos, marido, quereis?
PERO:
Eu não saberei entoar..
INÊS:
Pois eu hei só de cantar
E vós me respondereis,
Cada vez que eu acabar:
“Pois assi se fazem as cousas”.
Canta Inês Pereira:
INÊS:
“Marido cuco me levades
E mais duas lousas.”
PERO:
“Pois assi se fazem as cousas.”
INÊS:
“Bem sabedes vós, marido,
Quanto vos amo.
Sempre fostes percebido
Pera gamo.
Carregado ides, noss'amo,
Com duas lousas.”
PERO:
“Pois assi se fazem as cousas”
INÊS:
“Bem sabedes vós, marido,
Quanto vos quero.
Sempre fostes percebido
Pera cervo.
Agora vos tomou o demo
Com duas lousas.”
PERO:
“Pois assi se fazem as cousas.”
E assi se vão, e se acaba o dito Auto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
O tema de “A farsa de Inês Pereira” é desenvolvido com bastante humor,
que tem uma função crítica: serve para expor ao ridículo os
comportamentos censuráveis dos membros da sociedade.
O mote da farsa: “antes quero asno que me carregue do que cavalo que me
derrube”, constitui a síntese estrutural da peça, e a dicotomia que
atravessa o texto metaforiza, as atividades estéticas e sócio-culturais
medievais e renascentistas, que circunscreveram o período Humanista.
Gil Vicente, um homem situado entre dois mundos, soube como poucos
escrever a história de uma sociedade em transição, em seus aspectos
histórico, social e linguístico, sobretudo no que se refere ao papel da
mulher.
Esse fato pode ser comprovado na mudança de comportamento da protagonista.
Inês reflete os valores do mundo em que está inserida: do encantamento e
da fantasia, onde o parecer vale mais do que o ser, em relação à figura
cortês do cavaleiro.
A figura do escudeiro Brás da Mata, calculista e mentiroso,
representante de uma aristocracia decadente, que finge viver de forma
abastada, apenas para impressionar, representa a imagem do CAVALO e,
que, significativamente desmorona e a derruba no decorrer da farsa.
Inês, então, percebe as vantagens de aceitar a chegada do simplório,
porém bem situado Pero Marques, o ASNO, numa troca que sugere as
inúmeras mudanças a que a sociedade assistia, na medida em que, retrata a
decadência da nobreza, no cavaleiro sem posses e a ascensão da
burguesia, na figura do parvo Pero Marques.
É importante ressaltar que Inês ao conhecer Brás da Mata ficou
impressionada e convencida por seu discurso galante, adjetivoso e pelo
seu tom que remontava as cantigas de amor, além, de sua aparência
pomposa.
Interessante notar que é justamente á falta dessas “qualidades” que a decepcionaram com relação a Pero Marques.
Em segundo plano, encontram-se a ironia e a estarrecedora revelação do
condenável comportamento do clero na figura do padre que tenta agarrar
Leonor Vaz, daquele que já tentou fazer o mesmo com a mãe de Inês e do
ermitão que se tornará amante da jovem. Gil Vicente não poupava o clero e
suas peças insistem numa crítica contundente, mediante mordaz
comicidade. Devido a isso, muitos estudiosos o consideram um reformista.
Desse modo, pode-se caracterizar a dramaturgia vicentina a partir de três contradições:
1. Forma de Expressão: vincada pela pobreza cenográfica e, ao mesmo tempo, pela riqueza textual;
2. Construção do Conteúdo: reflexo do contraste entre a cultura medieval e a cultura renascente;
3. Personagens: entregue, ora à tipificação, ora à alegorização. Uma
dramaturgia que, apesar de ter origem no teatro litúrgico medieval, os
autos, se popularizou, alcançando características renascentes, ao
tornar-se mais telúrico, pagão, humorado e cotidiano.
http://valiteratura.blogspot.com/2011/03/farsa-de-ines-pereira-gil-vicente.html
Literatura
Professora Claudia F. Lazarini.
Farsa de Inês Pereira
A Farsa de Inês Pereira é uma peça de teatro escrita
por Gil Vicente, na qual retrata a ambição de uma criada da classe média
portuguesa do século XVI. Desafiado por aqueles que duvidavam do seu talento,
Gil Vicente concorda em escrever uma peça que comprove o provérbio "Mais
quero asno que me leve, que cavalo que me derrube".
Toda a peça gira em torno da personagem principal Inês
Pereira que nunca sai de cena. As rubricas/didascálicas são escassas, não há
mudança de cenário, e a mudança de cena é só pautada pela entrada ou saída de
personagens.
Resumo
As farsas, baseiam-se em temas da vida cotidiana,
tendo um enredo cômico e profano. A Farsa de Inês Pereira parte de um
provérbio: «mais quero asno que me leve, que cavalo que me derrube».
Esta farsa censura os «homens de bom saber» que constitui uma referência direta
ao público cortês. Esta era dotada de uma incontornável vertente não só
dramática mas acentuadamente teatral.
Inês Pereira, moça simples e casadoira, mas com grande
ambição procura marido que seja astuto e sedutor. A mãe de Inês, preocupada com
a sua filha, sua educação e casamento, incita-a a casar com Pero Marques,
pretendente arranjado pela alcoviteira Lianor Vaz, no entanto o lavrador não
agrada Inês Pereira, por ser ignorante e inculto. Pero
Marques, nunca viu sequer uma cadeira, e isso não deixa de provocar o riso,
assim funcionando como mecanismo subliminar o autoelogio da Corte.
Inês Pereira recusa-o, pois pretende
alguém que demonstre alguma cortesia, alguém que, à boa maneira da Corte, saiba
combater, fazer versos, cantar e dançar, alguém como Brás da Mata, o segundo
pretendente, que lhe é trazido pelos Judeus Casamenteiros, um pouco menos
sinceros e bem-intencionados do que Lianor Vaz. Mas Brás da Mata representa
apenas o triunfo das aparências, um simulacro de elegância, boa -educação e
bem-estar social, que acredita no casamento como solução para as suas
dificuldades financeiras.
Este casamento depressa se revela desastroso para
Inês, que por tanto procurar um marido astuto acaba por casar com um, que antes
de sair em missão para África, dá ordens ao seu moço que fique a vigiar Inês e
que a tranque em casa de cada vez que sair à rua. Brás da Mata, era um
escudeiro falido que casou com Inês de forma a poder aproveitar-se do seu dote.
Três meses após a sua partida, Inês recebe a prazerosa
notícia de que o seu marido foi morto por um mouro. Não tarda em querer casar
de novo, e é nesse mesmo dia que Lianor Vaz traz-lhe a notícia que Pero
Marques, continua casadoiro, de resto como este tinha prometido a Inês aquando
do primeiro encontro destes.
Inês casa com ele logo ali, e já no fim da história
aparece um Ermitão que se torna amante da protagonista.
O ditado “mais quero asno que me carregue que
cavalo que me derrube”, não podia ser melhor representado do que na última
cena da obra quando o marido a carrega em ombros até ao amante, e ainda canta
com ela “assim são as coisas”.
Trata-se, portanto, de uma sátira aos
costumes da vida doméstica, jogando com o tema medieval da mulher como
personificação da ignorância e da malícia.
Personagens
· Inês: representa a moça casadoira, fútil, muito
preguiçosa e interesseira, que se casa duas vezes, apenas para se livrar do
tédio da vida de solteira. Não conseguindo casar-se na primeira tentativa,
garante-se na segunda, com o marido ingénuo. Apesar de seu comportamento
impróprio, consegue até mesmo a simpatia do público pela inteligência com que planeja
seus passos.
· Lianor(Leonor)
Vaz: é a alcoviteira, mulher
na época assim chamada que arrumava casamentos, revelando que a base da família
está corrompida.
· Mãe: apesar de dar conselhos à filha, acha
importante que ela não fique solteira e torna-se cúmplice das atitudes dela.
· Pero
Marques: é o marido bobo, mas
um lavrador abastado. Apesar de ser ridicularizado por Inês, ele se casa com
ela e deixa que ela o maltrate e o traia.
· Escudeiro: Preocupado em encontrar uma esposa, finge, e
engana, criando uma imagem de "bom moço" que depois se revela um
tirano, e deixa Inês presa na sua casa, contudo ele é morto por um mouro.
· Moço: era um amigo do primeiro marido de Inês, que
o ajuda a mentir para se casar com ela.
· Ermitão: era o amante de Inês que depois se torna padre.
· Latão
e Vidal: judeus
casamenteiros.
Tempo
É um tempo dilatado,
tendo o espectador dificuldade de se aperceber da sua passagem
Cômico
Encontramos, nesta farsa, comicidade na situação da personagem
Inês, Pero Marques e no escudeiro; na
cena de ‘’namoro’’ de Inês com Pero Marques; na linguagem da carta e na linguagem de Pero Marques e na fala dos
judeus casamenteiros. Podemos considerar as rezas e as pragas (esconjuros) como
cômico de linguagem.
Objetivo da crítica
vicentina
Gil Vicente critica:
· A mentalidade das jovens raparigas;
· Os escudeiros fanfarrões, galantes e
pelintras;
· A selvageria e ingenuidade de Pero Marques;
· As alcoviteiras e os judeus casamenteiros;
· Os casamentos por conveniência;
· Os clérigos e os Ermitões.
Estrutura da peça
Nesta farsa não
existem divisões cênicas, mas é possível dividi-la em 3 atos. De assinalar a importância da divisão em espaço interior e
exterior. Nota-se o paralelismo presente nos contrastes que Gil Vicente
estabelece na construção do monólogo e diálogo inicial da peça, e no monólogo e
diálogo ocorridos após a notícia da morte de Braz da Mata. É através destes paralelismos e contrastes que Gil
Vicente expressa a mudança ocorrida com Inês.
Concluindo
Desta ação pode extrair-se: o que Inês mais queria, acabou por conseguir; a sua liberdade,
encontrada junto de Pero Marques. A unidade
da ação é dada pelo tema e pela personagem principal, Inês Pereira.
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